Toda quarta-feira, pouco antes das 19h, o autônomo Francisco Ferreira, 65 anos, aproxima-se da sala do Conselho Municipal de Segurança Alimentar (Consea). O espaço fica próximo do Restaurante Popular de Santa Maria, no Parque Itaimbé. Há um ano, a distribuição de refeições é a garantia de uma alimentação digna. Francisco – ou Chico, como é chamado pelos colegas e integrantes do projeto – conta que trabalha como autônomo, e o pouco dinheiro que possui no bolso tem como prioridade a esposa, que está com problemas de saúde.
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– O projeto chegou até mim em um momento que eu precisava, pois estava desempregado e sem conseguir trabalhar porque minha esposa teve um AVC. Hoje, trabalho como autônomo, e o que me ajuda é vir buscar a janta aqui, porque ganho pouco – explica Ferreira.

Por trás da garantia de Ferreira, e outras centenas de pessoas em situação de vulnerabilidade social que são assistidas, estão 14 projetos que se revezam no espaço. Conforme os integrantes, desde a pandemia, as iniciativas se alternam para garantir que, diariamente, os assistidos recebam as marmitas.
No dia 11 de abril, os projetos, em diálogo com o Executivo, acordaram sobre a saída do espaço, que é administrado pela prefeitura de Santa Maria. Conforme Carolina Zanatta, uma das voluntárias, a justificativa para a mudança seria o déficit de R$ 91 milhões da prefeitura – o que levou ao bloqueio de 50% dos recursos do orçamento, anunciado pelo governo Rodrigo Decimo (PSDB) em março deste ano. Ela se refere ao valor gasto no aluguel do espaço ocupado pela Sala dos Conselhos, que se mudaria para a sala onde acontece a distribuição das marmitas. Outros motivo, conforme ela, seria o desarquivamento, por parte do Ministério Público, de um abaixo assinado feito pelos moradores do entorno do Restaurante Popular que pedia a saída dos projetos do local por conta do barulho.
A oferta foi uma sala embaixo de um viaduto, no Parque Itaimbé. Mas o local ainda precisaria passar por melhorias na infraestrutura, como afirma uma das voluntárias que atua no espaço:
– O fato de termos aceitado ir para lá (viaduto) foi para não ter que servir na rua. Não significa que estamos felizes. Foi ofertado pela prefeitura uma sala mas totalmente desequipada, suja e inutilizável. Por isso, pedimos para a prefeitura tornar apto o local para migrarmos. Falta iluminação, autorização para estacionar dentro do parque, limpeza, lixeiras e entre outras coisas – diz Carolina.

Ainda de acordo com ela, a prefeitura definiu que até 1° de maio realizaria as mudanças, mas, até agora, não houve retorno e os projetos seguem no espaço.
O que diz a prefeitura
Em nota divulgada no dia 14 de abril, a prefeitura alegou que “o espaço utilizado agora pelos projetos não possui estrutura suficiente para o atendimento das pessoas, como banheiros e abrigo para dias de chuva”. Em entrevista ao Diário, o secretário de Desenvolvimento Social, Juliano Soares, conhecido como Juba, esclareceu também que a mudança de local não está relacionada com o bloqueio orçamentário realizado por Decimo, mas sim que busca atender às demandas de todos os envolvidos – inclusive daqueles que moram próximo ao Consea.
O novo espaço ofertado contempla cozinha, dois banheiros e uma área mais ampla, que oferece proteção em dias de chuva. No entanto, ainda depende de melhorias para que os projetos possam fazer a mudança.
– O que está emperrando a situação é a rede elétrica, porque a fiação que seria puxada de um poste não foi possível e do poste que vão precisar puxar, que é diretamente da rua, tem que fazer um projeto com responsabilidade técnica. Então, enquanto não acaba essa situação, eles permanecem lá – comentou o Secretário.
Até este momento, a prefeitura não estabeleceu um novo prazo de entrega do viaduto, mas o Secretário reforçou que, até que a entrega do novo local seja feita, os projetos poderão seguir realizando suas atividades na sala do Consea, sem prejuízos às pessoas beneficiadas. Após a mudança, o objetivo é que o espaço seja utilizado para receber a Casa dos Conselhos, o que custa um aluguel de R$ 9 mil mensais à prefeitura.
"O alimento é porta de entrada para a ressocialização"
Um dos projetos que estão na sala do Consea é o Panela do Bem, que há sete anos começou a produzir marmitas para pessoas em situação de vulnerabilidade a partir de sobras do Feirão Colonial. Hoje, o projeto distribui de 100 a 120 marmitas, toda quarta-feira. Ao todo, são 40 pessoas envolvidas. Os alimentos não-perecíveis são oriundos do Banco de Alimentos. Já outros custos, como proteína, gás e marmitas descartáveis, são custeados pelo projeto.
Conforme o coordenador do Panela do Bem, Claricio Severo Marques, 56 anos, o projeto é voltado para pessoas em situação de vulnerabilidade social ou em situação de rua. Diante disso, um dos objetivos é a ressocialização:
– Eu sempre digo que o alimento é muito importante, mas ele serve de porta de entrada também, para a ressocialização. A gente trabalha para fazer a ressocialização daqueles que querem se tratar por conta de dependência química ou alcoolismo. Criamos mecanismos para que eles consigam voltar para o âmbito familiar e ter o seu emprego.

O trabalho começa nas cozinhas solidárias – localizadas nos bairros Salgado Filho e Minuano. Nesses locais, cerca de dez voluntárias se dividem nas tarefas do preparado. Junto com cada etapa, que inclui a escolha do cardápio, o corte dos ingredientes e o “mexa bem”, o ambiente é de muito diálogo e animação. A professora aposentada, Iara Flores Castro, 57 anos, descreve o grupo como uma grande família. Ela conta que ingressou no projeto em maio do ano passado e, desde então, nem vê o tempo passar na quarta-feira:
– O meu sonho sempre foi participar de um projeto, mas eu não sabia no que. Eu me sinto muito bem aqui, formamos uma família. Aqui nada é uma obrigação, é um trabalho prazeroso e que fazemos com amor. Eu saio daqui de alma leve. E é um pouquinho perto de tudo que precisa. Tem tanta gente precisando.

As voluntárias contam que preparar uma grande quantidade de marmita não tem mistério. Quando chegam os ingredientes, elas decidem o cardápio e vão se dividindo nas tarefas. Tudo, conforme elas, é feito com amor. “É como se estivesse cozinhando para meu neto”, disse uma delas enquanto mexia o panelão de risoto de legumes, o cardápio da semana.
Por volta das 17h, as marmitas começam a ser finalizadas e organizadas para a distribuição, que acontece a partir das 19h na sala do Consea. Uma a uma, cada refeição é entregue pelos integrantes do projeto que reconhecem a maior parte das pessoas na fila.
– Criamos um laço de amizade. Se não tiver alguém que sirva o alimento para eles, daqui a pouco pode acontecer pequenos delitos ou alguns furtos para poder comer. Isso é natural do ser humano. Se ele não tiver o que comer, vai arrumar uma maneira de comer. Não estou dizendo que são ladrões, estou afirmando que a falta de refeições tem um reflexo negativo na sociedade – afirmou Marques, ou Catito, como é conhecido no projeto.

Como se tornar um voluntário
Para se tornar um voluntário ou voluntárias, os interessados podem entrar em contato pelo Instagram “@paneladobemsm”. Quem participar pode atuar na captação, produção ou distribuição, a depender do horário e do interesse.
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